É impossível ignorar. Basta
ligar a TV, o rádio, ler o jornal ou até mesmo andar pelas ruas da cidade, para
perceber que nesta época do ano o ambiente adquire novas nuances. Ruas
iluminadas, vitrines e jardins decorados, lojas e shoppings abarrotados. Em
quase todo o mundo, a população frenética entra num processo coletivo de
planejamento para as comemorações de Natal e Réveillon.
Mas não é só agitação e
folia que permeiam a época festiva. O encerramento do ano, como é de praxe,
convida todos a um tempo de reflexão sobre a vida e o ano que passou.
Goste ou
repudie as festas natalinas, não há escape. Refletir é quase uma imposição da
cultura midiática. Como num fechamento de contas, o mês de dezembro pede um
balanço geral de entradas e saídas. Nesta contabilidade silenciosa, em que
pesam a situação dos relacionamentos familiares, afetivos, as condições
socio-econômicas do lar, saúde, metas, satisfação pessoal e profissional,
alegrias e frustrações se evidenciam. E, como a vida nem sempre corresponde ao
ideal de felicidade almejado, para milhões de pessoas a época “supostamente”
mais feliz do ano pode ter significância justamente contrária.
Jonatan
Beiertorf, 22 anos, é exemplo disso e compartilha com Enfoque alguns de seus
olhares sobre a época do Natal. ”Basta que as lojas e shoppings comecem a expor
a decoração natalina para que a melancolia venha à tona. Sinto uma angústia
apertando meu peito. Um vazio existencial. Tenho vontade de ficar trancado em
casa, sozinho”.
Beiertorf atribui sua quase
repulsa pelas ocasiões festivas às lembranças da mesa escassa e da embriaguez
de seu pai. “Em quase todas as festas de fim de ano, recordo com facilidade de
uma cena: na casa de meus amigos, a família reunida, alegre, muitos presentes
ao redor da árvore e a mesa repleta de doces, perus, amêndoas e passas. Em
minha casa, presentes baratos e uma ceia bem simples, sem qualquer requinte ou
fartura”. Para completar, ele declara que seu pai costumava beber já na manhã
das vésperas, e quando chegava a virada, estava totalmente embriagado.
Para a psicóloga e
psicanalista Karin Wondracek, professora das Faculdades EST (RS), “a idealização da festa ou da
família tem sido o caminho mais fácil para que um indivíduo experimente os sentimentos depressivos”.
Diversas pesquisas na área
da Psicologia mostram que o ser humano tem a tendência natural de avaliar-se,
tomando por modelo pessoas que estão em uma situação – social, econômica ou até
estética – “melhor”, prática esta conhecida por ”comparação ascendente”, que
inevitavelmente provoca insatisfação. Aliado a isso, tem-se também o
capitalismo que, de modo incessante, prega o bem-estar emocional como produto
de consumo a ser adquirido nas prateleiras das melhores lojas.
Essa filosofia coloca a
felicidade num patamar sempre acima daquele em que o indivíduo está, tornando-a
inatingível. Desse modo, pessoas que têm o suficiente para viver uma vida
agradável se comparam a outras em níveis sociais mais elevados, e assim
sucessivamente, numa recorrência quase sem fim, onde a insatisfação é resultado
final porque exige-se das pessoas uma superação de limites quase diária,
estabelecendo, assim, uma competição contínua que possibilita o crescimento,
mas também provoca fadiga, estresse e até depressão.
Estatísticas
Na América Latina não há
pesquisas que mostrem estatísticas precisas de quantas pessoas demonstram
sentimentos de ansiedade durante a época festiva. Porém, nos países do
Hemisfério Norte, como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, entre outros,
estima-se que cerca de 56% da população considere o Natal um período muito
estressante, e aproximadamente 60% manifeste solidão.
A constante transformação
da sociedade pode oferecer uma boa resposta para esse índice cada vez mais
elevado de pessoas que se sentem isoladas. Enquanto a mídia impõe um ideal de
festa em grupo, onde a família unida, abastada e feliz, troca presentes e se
farta com ceias suntuosas, o mundo apresenta um panorama completamente
diferente, em que o coletivo desaparece e o individual se sobressai.
Um pequeno fragmento dessa
mudança pode ser observado através do censo do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística), que revela, entre 1991 e 2000, um aumento de 70,5% de
pessoas solteiras, viúvas, separadas ou divorciadas que passaram a morar
sozinhas. De 2005 para 2006, esse número aumentou ainda mais, ultrapassando a
casa dos 6 milhões. No Reino Unido, a soma já superou o número de famílias e,
nos Estados Unidos, 25% das casas têm apenas um morador.
O que para muitos é visto
como um privilégio, para outros, sobretudo em datas festivas, pode ser uma
desilusão. Grande parte daqueles que, por algum motivo, não podem passar as
festas com a família, também compartilha de sentimentos de repulsa pelo Natal.
Esse número aumenta ainda mais entre pais separados. Para cerca de 50% dos
casamentos que terminam em divórcio, o Natal pode ser um verdadeiro pesadelo.
S. Mendes, 44 anos,
administrador de empresas, pai de duas filhas e divorciado há quase 6, revela
seus sentimentos. “Desde que me separei, passei a odiar o Natal. Nessa época,
só de ver uma criança acompanhada dos pais, caminhando no shopping, sinto uma
espécie de culpa e opressão. Mesmo que eu passe todas as semanas com minhas
filhas, se no Natal ou Réveillon elas estiverem distantes de mim, a angústia se
manifesta como se nossos encontros do ano inteiro fossem apagados”. Mendes
admite, ainda, que em alguns momentos a solidão foi tão grande que acabou
recorrendo ao álcool como válvula de escape. O que ele desconhece é que o
álcool não anestesia a dor, mas estimula ainda mais a ansiedade.
Os Perigos da depressão natalina
A depressão de Natal, ou
Blue Christmas, como é conhecida nos países de língua inglesa, pode ser
considerada irrelevante em função de sua característica transitória e sazonal.
Afinal, frustrações fazem parte da vida de qualquer pessoa e, muitas vezes,
possuem resultados até positivos. No entanto, o que poucos sabem é que a parte
submersa desse iceberg é bem mais perigosa do que se pode imaginar. Para
aquelas pessoas que já estão em depressão profunda – e elas representam 340 milhões em todo o planeta –
Natal e Ano Novo podem ser a gota
d’água para o suicídio.
De acordo com a instituição
nacional CVV (Centro de
Valorização da Vida), uma associação civil de natureza filantrópica que
oferece serviço voluntário de apoio emocional – gratuito e sigiloso – a todas
as pessoas que necessitam falar sobre suas dificuldades, só no ano de 2006 mais
de 1 milhão de pessoas foram atendidas. Um número que desde 1994 tem crescido
cerca de 10% a 20% ao ano e, segundo a voluntária Conceição, do CVV de Porto
Alegre, RS, tem seu pico por ocasião do Natal.
Por telefone, Conceição diz
que nessas datas as pessoas se sentem solitárias, saudosas, tristes, lembram
dos entes queridos, às vezes estão desempregadas, endividadas, encontram-se
longe dos familiares etc., e, devido à época, recorrem aos serviços do CVV”.
Preocupada com as estatísticas de suicídio que não param de crescer, Conceição
afirma: “Sabemos que isso pode ser mudado e, para tanto, estamos empenhados em
abrir novos postos de atendimento, oportunizando a expansão desse trabalho”.
Dona Elza Lopes, 51 anos,
cristã e moradora da Vila Umbú, em Alvorada – a cidade que registra os maiores
índices de violência do Estado do Rio Grande do Sul – sabe bem o que é isso.
Mãe de 13 filhos, 2 deles (24 e 16 anos) recentemente assassinados, conta que o
marido, engraxate, tem depressão profunda e já tentou se matar por três vezes.
Uma delas na época do Natal. Segurando a filha de 2 anos no colo, Vitorinha –
como chama a menina, que tem taquicardia e síndrome de Down – ela enfia a mão
em um buraco do sofá e revela o esconderijo onde fica guardada a sacolinha de
ansiolíticos que seu companheiro recorre sempre que tenta dar fim à própria
vida.
Questionada sobre como se
sentia na época do ano em que o mundo se enfeita para as comemorações de Natal
e Réveillon, Elza tenta conter as lágrimas para aparentar força em frente às
filhas Valéria e Vanusa (8 e 9 anos), que assistem atentas ao seu depoimento:
“O senhor pode até pensar que eu sou forte, mas não sou”, diz ela, agora em
prantos. “Eu não acredito em nada. Sou uma pessoa que vive só por viver. A
noite de Natal, para mim, é a mais triste do ano. Ficamos todos encerrados dentro
de casa. Nessa época, minha tristeza dobra. Desde que me casei, nunca tive um
Natal bom. Tem momentos em que tenho vontade de sumir. Daí eu saio, sento na
calçada e penso na Vitorinha. Ela precisa de mim. É só isso que me faz
continuar a viver”.
O Papel da Igreja
Diante de depoimentos como
esse, surge o inevitável questionamento: e a igreja, o que tem feito para
proporcionar um fim de ano mais digno a essas pessoas? Todos sabem que o Natal
“simboliza” o nascimento de Cristo e que o mundo deturpou o seu real sentido.
Essas constatações, porém, não preenchem o vazio existencial que a cultura secular natalina impõe,
sobretudo entre os mais necessitados.
Pastor Fábio da Veiga,
responsável pelo trabalho social da Igreja O Brasil para Cristo da Vila Umbú/Alvorada,
RS, onde cerca de 30% da congregação é formada por pessoas extremamente
carentes, declara: “O que estamos tentando fazer é um evangelismo mais prático,
de ajuda efetiva ao próximo. Além de conseguirmos alimentos e vestimentas para
muitas famílias, também procuramos saber qual o sonho dessas pessoas. Alguns
gostariam de ter um piso que não fosse de chão batido, outros de ter um
banheiro, a casa pintada ou até rebocada. Então a gente avalia as necessidades
e, através de recursos doados por outros irmãos, compramos os materiais e
executamos as obras em sistema de mutirão. Acho que não só especificamente no
Natal, mas no ano todo, tem sido um desafio levarmos mudança de vida a essas
pessoas”.
Márcia Roque,
relações-públicas da Casa Lar Emanuel, um abrigo evangélico que sustenta
aproximadamente 600 internos e depende de doações para sobreviver, avalia que a
igreja tem ajudado, mas ainda de forma muito acanhada. “É uma pena que grande
parte dos cristãos só se lembra dos necessitados nesta época do ano“, diz Nara
Ulguim, presidente do abrigo, fundado por seu pai, pastor Araudo Ulguim, há 35
anos. Para elas, que convivem diariamente com os necessitados, o melhor
presente que eles podem ganhar e qualquer um pode dar é dedicar um pouco de
tempo para dialogar com eles, distribuindo amor, carinho e muitos abraços.
Isso, certamente, faz a diferença.
Depois de conversar com
três crianças internas da instituição, Pedro, 12, Diogo, 9, e Juliana, 8,
irmãos que moravam em um barraco, passaram fome, foram maltratados e por fim
abandonados pela mãe há cerca de quatro anos, Enfoque pôde concluir: não há
trauma que não possa ser superado. Não há Natal em que seja impossível
encontrar um motivo para se comemorar. Pedro, Diogo e Juliana não querem nenhum
presente. Garantem que a vida que levam é muito feliz. Este ano eles só querem
agradecer a Deus. E arriscam um recado àquelas pessoas que se entristecem por
não terem suas vidas do jeito que gostariam: “Elas têm tudo. Têm onde morar,
não passam fome. Por que ficar triste? Isso é motivo para ficar feliz”.
Um grande Natal talvez não
seja aquele idealizado, com presentes caros ou uma situação econômica
maravilhosa. A felicidade nunca será atingida se for conduzida pelo consumo e o
individualismo. Como disse Karl Marx, em 1844, “os maiores homens são aqueles
que se enobrecem trabalhando pelo bem comum; a experiência aclama como mais
feliz aquele que tornou feliz o maior número de pessoas”.
Portanto, neste Natal, aja
diferente. Não apenas deseje, mas faça ao próximo algo para torná-lo mais
feliz. Lembre-se de que um gesto de amor não custa nada. Convidar alguém
solitário para passar as festas em sua casa, por exemplo, não lhe tornará mais
pobre. Dessa forma, com uma maior percepção das carências de outras pessoas, o
valor do nascimento de Cristo estará sendo reconhecido e a performance natalina
cristã não será apenas demagogia, mas uma ação concreta de abnegação,
solidariedade, compaixão e afeto.
É isso que faz acontecer um feliz Natal.
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